Hoje de manhã estive no funeral do Facas. Ou melhor, fui ao funeral do Facas; isto sou eu a combater a ideia geral de que quando vamos ao funeral de alguém é para nos despedirmos dele, o que me parece naturalmente uma estupidez.
Eu conheci o Facas, Luís Pedro de seu nome, nos meus tempos de estudante universitário e tuno; não fazíamos parte da mesma escola, e muito menos da mesma tuna; o destino juntou-nos quando um amigo comum quis fazer uma estudantina em Setúbal (uma espécie de tuna all stars de Setúbal) e, ao mesmo tempo eu catrapiscava uma rapariga da Universidade Moderna, sua colega.
Cheguei ao velório trajado, por acordo comum de quem foi e é tuno; muita gente, novos e velhos, mas poucos tunos trajados; confesso que não estava muito à vontade, sentia-me mesmo desconfortável a regressar ao meu eu de há quinze anos atrás. Conhecia pouca gente e sentia muitos olhos em cima de mim. No entanto, depois de abraçar a mulher do Facas e de reconhecer uma caras conhecidas que não via há mais de dez anos, passei gradualmente do estado de envergonhado ao estado de revivalista.
O Facas é uma daquelas pessoas que nos filmes é definida como “larger than life”. Toda a gente o conhecia, grande e com uma voz grossa. Eu defino-o com dois adjectivos: feio (“feio não, mal encavado”, como ele diria) e cortês. Nunca o vi perder a compostura ou a cabeça com nada; qualquer situação, por mais obtusa que fosse, era arrematada com comentário certeiro, às vezes mais castiço, às vezes mais irónico, aliviando ambientes pesados, ou dando graça a pormenores que passariam despercebidos. O seu “então não se bebe nada por aqui?” era famoso.
Gostei muito de rever todas as pessoas, e de circular no meio delas, procurando reconhecê-las, perceber que algumas não me conheciam nem eu a elas, e ver quem faltou. Muita gente que não esteve foi recordada, outros estavam, mais gordos, mais grisalhos, elas bonitas ou mais estragadas. Não ouvi muita daquela conversa de circunstância “era amigo do seu amigo”, “Só nos juntamos para as tristezas, nunca para as alegrias”; toda a gente parecia saber o que estava ali a fazer, e sentia que era importante estar ali, não para se despedir do Facas, mas para celebrá-lo e recordá-lo, na sua vida e nas suas estórias.
O Facas era um homem de estórias. Sabia contá-las e vivê-las. Toda a gente sabe estórias do Facas e toda a gente tem estórias com o Facas, muitas. Lembro-me de ir a uma farmácia com ele comprar vaselina (que íamos oferecer como prenda a um aniversariante) e do ar castiço com que ele, depois do farmacêutico perguntar se a queríamos líquida ou sólida, se vira para mim e diz: “tu é que sabes o que te custa menos”. Ou num restaurante chinês, quando o empregado lhe pergunta se ele quer a sangria com Martini ele replica “ó amigo, faça como se a sangria fosse para si”. Ou dos comentários sobre os nossos dotes musicais; ele dizia sempre que eu tinha voz de cantora de cabaret dos anos vinte.
O funeral começou tarde, mas ninguém deu pelo atraso. Muitos abraços e beijos foram dados, muitas estórias, com e sem ele foram contadas, muitas vidas foram recontadas desde os últimos dez, quinze anos. O Facas aparecia na conversa sempre como participante, nunca como defunto. As causas da sua morte, apesar de explicadas, foram unanimemente aceites, como se fosse uma fatalidade, algo que tinha que acontecer. Não ouvi ninguém perguntar se se poderia ter feito mais, ou diferente. Não vi ninguém revoltado com a forma violenta e prematura de morte que o levou. Não consigo explicar isto, era como se ele andasse no meio de nós, com aquele sorriso de “boca linda” que tinha.
Além de bom vivant, o Facas conhecia a tradição académica. Sabia os preceitos, as tradições e, muito mais importante, o que se tocava nas tunas. Era um músico multifacetado, com bom ouvido e pé ligeiro. Era um prazer tocar com ele, porque por mais que se aldrabassem as músicas, improvisasse (lembro-me de um louco ensaio/jam session na casinha que albergava a Tuna da Moderna, antes das obras no edifício principal), ele apanhava tudo, seguia atrás de quem desse o tom ou puxasse uma desgarrada. Independentemente do vinho tinto que bebia (“ó minha senhora, branco é lá vinho?”) era a base, instrumental ou melódica, sempre que necessário. Lembro-me da actuação da estudantina na semana académica de Setúbal de 1997. Lembro-me das Festas das Vindimas desse mesmo ano, onde se preparou uma marcha de Palmela para tuna, juntámos toda a gente num ensaio regado a garrafinhas pequeninas de Moscatel e a Teresa Papa cantou connosco no largo S. João. Estar com o Facas não era só sinónimo de copos e boa disposição, era tirar prazer e satisfação de tocarmos juntos.
Durante a cerimónia , não vi muita gente a chorar. Alguns choros abafados quando o caixão desceu à terra, mas o que mais havia era gente com cara determinada, olhos vermelhos, como se soubesse que tinha de estar ali, à espera. Acompanhando. Foi reconfortante chegar ao pé da Betty, e recordarmos com um sorriso uma viagem de carro que tínhamos feito os três, sem palavras vazias de circunstância; foi talvez o momento mais marcante para mim de toda a cerimónia. Quando saímos do cemitério, entrámos no primeiro café, pedimos uns jarros de vinho tinto, carne de porco frita e estivemos ali, a brindar e a comer, recordando estórias, rindo muito. Celebrámos, recordámos, revivemos.
Conheci o Facas numa das fases da minha vida que mais apreciei, que mais vivi intensamente. Éramos novos, confiantes, bem-humorados e vivemos momentos extraordinários. Juntos bebemos (muitos) copos, e discorremos sobre a vida, ou assuntos triviais (“sabes qual é a diferença entre estrume e churume?”). Não fui seu amigo íntimo, mas essa era uma das suas principais qualidades; as pessoas gravitavam à sua volta, atraídas pela sua bonomia, pela sua boa onda. Nada, nenhuma das suas memórias se desvanece com o seu desaparecimento; são estórias para contar à minha filha, quando lhe vir nos olhos o brilho que eu tinha nos meus nessa altura da vida. Mas quem partiu, deixa nos corações de quem fica mais do que o vazio das estórias. O Facas vai fazer-nos muita falta.